Fitoterapia Chinesa – Introdução – Parte I
Introdução à Fitoterapia Chinesa (parte I – Breve Histórico)
O campo da Fitoterapia Chinesa – o uso de drogas não quimicamente processadas com finalidade terapêutica, segundo os princípios da Medicina Tradicional Chinesa – é frequentemente mal compreendido no Brasil devido à escassez de material bibliográfico que trate o assunto com a profundidade necessária.
Não é raro depararmo-nos com erros básicos devido à uma interpretação superficial de regras gerais que não são sempre aplicáveis.
Um exemplo comum é a tentativa de aplicar diretamente a correspondência das Cinco Fases (ou Cinco Elementos) da cosmologia chinesa com os chamados “cinco sabores”, sem levar em consideração as outras propriedades dos compostos.
Além disso, uma prescrição fitoterápica na maioria das vezes engloba 6 ou mais componentes, sendo um ou dois deles os agentes principais contra a causa do mal mas tendo os restantes papéis não menos essenciais, como de impedir um efeito colateral indesejado ou “encaminhar” o agente principal ao locus da doença.
Qualquer alimento pode ser classificado conforme as propriedades aqui descritas, e esta classificação forma a base da Dietética energética Chinesa. O leitor concluirá logo que recomendações do tipo “este alimento é bom para tal órgão” são vazias de significado, do ponto de vista da Medicina Tradicional Chinesa, pois “é bom” não leva em consideração nenhuma análise das propriedades de um alimento em relação aos vários padrões de desequilíbrio que podem manisfestar-se ligados à um órgão do corpo.
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Com o objetivo de oferecer um panorama introdutório, porém preciso a ponto de mostrar a complexidade do tema, oferecemos este artigo que trata da história do pensamento por trás do modo de operação da Fitoterapia Chinesa. Ele será seguido de um segundo artigo tratando dos princípios gerais envolvidos na escolha dos fitoterápicos. Não serão oferecidas sugestões ou nomes de fitoterápicos para evitar o seu uso indevido.
O aparecimento da Fitoterapia na China
Shang
O Império Shang, primeira dinastia chinesa a deixar traços de procedimentos terapêuticos, floresceu aproximadamente entre o 18º e o 16º séculos a.C. A história dos Shang foi documentada durante o período Chou. O conceito predominante a respeito das causas do adoecimento, na dinastia Shang, era o de atos perniciosos praticados por terceiros ou por ancestrais mortos. O procedimento terapêutico era concentrado em aplacar ou expulsar o espírito suspeito de causar o mal, e foi chamdo de “exorcismo da causa”.
Preparações medicinais, como drogas feitas com plantas, aparentemente não tiveram lugar na medicina ancestral dos Shang: não estão presentes nos ossos oraculares inscrições que contenham nomes de drogas, e não foram encontrados caracteres que possam significar “medicamento”.
Chou
A data incerta de 1100 A.C. é geralmente aceita como o início da dinastia dos Chou. A visão prevalente no período Chou parece ter sido a de que o sistema bem ordenado de relações e comunicação entre as criaturas vivas e o mundo dos deuses e espíritos havia caído num estado de grande confusão e posteriormente rompido-se completamente. Apareceram, durante o período dos Estado Combatentes, os mitos que reconheciam nos demônios (gui) uma influência maléfica crescente sobre os humanos.
As práticas terapêuticas tornaram-se então essencialmente demonológicas – não bastava mais apenas aderir a um comportamento agradável aos ancestrais para garantir a saúde, era agora necessário que os espíritos guardiães do indivíduo fossem fortes o suficiente para protegê-los dos espíritos maléficos.
Neste contexto acreditava-se no poder de algumas substâncias, além de certos encantamentos, exorcismos e talismãs, de afastar ou expulsar os demônios causadores do adoecimento. Um compêndio preparado por Sun Si-miao, por exemplo, lista 32 drogas eficazes contra demônios.
O paradigma das correspondências
O paradigma das correspondências baseia-se na crença de que os fenômenos do mundo visível e do mundo invisível estão em dependência mútua através da sua associação com certas linhas de correspondência. Manipulações de um elemento numa determinada linha de correspondência podem influenciar elementos nessa mesma linha.
Correspondência mágica
As linhas de correspondência mágica são normalmente separadas umas das outras e não podem exercer influências mútuas. Uma das espécies de correspondência mágica é a correspondência homeopática, que repousa sobre o princípio de que os iguais se influenciam.
A literatura médica chinesa dos últimos dois mil anos, especialmente os trabalhos devotados à drogas medicinais, frequentemente contém medidas terapêuticas derivadas de mágica homeopática. Pode-se citar como exemplo Li Shi Zhen (1519-1593), autor do Bin Hu Mai Xue e do Qi Jing Ba Mai Kao, segundo maior autor sobre materia medica chinesa, que descrevia o uso de escovas de madeira carbonizadas como remédio a ser tomado para inchaço abdominal devido à ingestão de piolhos.
Correspondência sistemática
O florescimento e ascenção da ideologia de correspondência sistemática à posição de dominância conceitual dentro da filosofia natural chinesa, provavelmente a partir do fim da dinastia Chou, foi um dos períodos mais decisivos na hitória intelectual da China. Reconheceu-se que não apenas um número limitado de elementos forma uma linha de correspondência, mas que todos os elementos naturais e conceitos abstratos podem ser incorporados num sitema único de correspondências. As doutrinas do Yin-Yang e das Cinco Fases foram a base para que esse passo conceitual pudesse ser dado.
A característica significativa da filosofia chinesa nos 500 últimos anos antes de Cristo é a tentativa de explicar os fenômenos do mundo sensível como acontecimentos naturais, sem referir-se a forças misteriosas como deuses ou ancestrais.
Um texto de prescrições chamado Wu shi er ping fang, desenterrado do sítio arqueológico de Ma Wang Dui, dá ampla evidência de que técnicas complexas de farmacologia (utilizando substâncias naturais) estavam em uso por volta do século II a.C.
Taoísmo
O ponto comum entre as muito divergentes correntes do taoísmo é o conceito de Tao, o inominável, indescritível, inefável. O confucionismo também referia-se ao Tao, mas com um sentido mais de “maneira correta do homem coexistir em sociedade”. Se os confucionistas criam que um estudo do homem pode levar ao conhecimento dele próprio – a mais alta das criaturas – os taoístas sentiam que a observação da natureza é que fornece insights sobre o homem, que não é em nada melhor que o mais baixo dos vermes.
Mas os taoístas estavam mais preocupados com o conhecimento de como harmonizar-se com a natureza – o conceito de “não-ação” é um dos mais conhecidos da filosofia taoísta. Enquanto os confucionistas tinham como ideal o te (virtude, força moral), que resultava da obediência a um sistema detalhado de regras e ritos sociais; os taoístas rejeitavam explicitamente tais imposições, baseados na sua doutrina de que o te (potencial) resulta da adaptação, conformação, suavidade e passividade, que permitiam a manifestação do Tao.
Terapia pragmática com drogas
O primeiro capítulo do Nei jing Su wen refere-se ao conceito primeiro expresso por Chuang Tzu de “completar todo o seu período de vida, e não morrer prematuramente no meio do caminho”. A aversão de Chuang Tzu à métodos artificiais de prolongar a vida material teve pouca influência no desenvolvimento subsequente do taoísmo durante as dinastias Ch’in e Han. Os adeptos taoístas passaram a almejar a imortalidade física, ou ao menos a longevidade, e além de métodos de qigong (chi kung) passaram a pesquisar a suplementação do corpo com substâncias eficientes para alcançar este fim.
O confucionismo defendia a classificação de cada indivíduo membro da sociedade em um sistema rígido e normativo de estrutura social, e a visão confucionista do mundo ligava a preservação da saúde individual à adesão à normas de condutas motivadas sociopoliticamente. Em contraste, o taoísmo lutava pela libertação do indivíduo destas obrigações sociais. A terapia com drogas (derivadas de plantas ou de minerais), que prometia a cada pessoa boa saúde e a longevidade sem envelhecimento, independentemente da submissão à normas de conduta social, foi para os taoístas um campo de estudos muito mais atraente que para os seus rivais. Foi devido a estas diferenças filosóficas que tentativas de estender as teorias médicas de correspondência sistemática, que inicialmente não tinham nenhuma relação com a fitoterapia, somente foram feitas no século XI, quando taoísmo e confucionismo tiveram uma aproximação conceitual, embora num nível restrito.
A tradição farmacêutica do Shen nung pen cao jing e de trabalhos subsequentes revela, em comparação com a tradição médico-teórica do Huang di Nei jing diferenças características que demonstram que estes dois campos não podem ser simplesmente agrupados sob o rótulo de “taoístas”. Embora o Shen nung peng cao refira-se a uma categorização primitiva com respeito ao yin-yang, não há integração dos efeitos das drogas com a fisiologia do organismo como descrita através da correspondência sitemática. Com apenas uma exceção, nenhuma menção é feita à doutrina das Cinco Fases.
Sung-Chin-Yuan
Uma comparação entre as versões Tai su, a mais próxima do original Han, e a Su wen, a versão do Huang di nei jing totalmente revisada durante a dianastia Tang e então uma vez mais durante a Sung será útil para ilustrar o processo de integração da terapia com drogas ao conceito de correspondência sistemática. Pode-se observar que na primeira versão já se encontra uma ferramenta conceitual para regular a ingestão de alimentos segundo uma enfermidade, devido à presença de uma classificação dos alimentos segundo suas cores, sabores e efeitos no corpo, segundo a doutrina das Cinco Fases.
Por outro lado, na segunda versão o fator dietético é muito menos significativo e o fator terapêutico é preponderante, e foram adicionadas as propriedades térmicas das substâncias e as suas ações (em termos de movimentos).
Assim, pelo menos a partir do século VII ou VIII, os pré-requisitos essenciais à criação de uma farmacologia de correspondência sistemática já estavam presentes no Huang di Nei jing. Tal empreendimento foi iniciado durante o período Sung-Chin-Yuan, e consistia em tentar analisar as qualidades de cada droga e ligá-las aos seus efeitos terapêuticos, integrando estes dois através da doutrina das Cinco Fases. O clássico Tang ye pen cao de Wang Hao-ku representa o ápice desse esforço monumental.